segunda-feira, 10 de setembro de 2012

a arte, vista como um hobby

Ricardina, essa, desaprovara com espalhafato «o despautério do menino». E era isso, para fazer versos, que arrasava a sua saúde, deitando-se de madrugada e trazendo aquela cara escaveirada. Vissem onde os versos tinham levado o avô Teotónio! E era um talentão, esse, íntimo de fidalgos, conhecido na Corte!... Pois lá morrera, numa enxerga de hospedaria, com uma camisa na mala e um montão de papelada!... E no seu horror à Poesia, que ela considerava a origem fatal da fome e do vício, pediu a Vasco que trouxesse o menino a ideias mais sérias, mais práticas, de carreira e de futuro: e o farmacêutico fê-lo com palavras muito graves, muito meditadas: se o senhor Corvelo gostava de empregar os seus vagares, como era justo na sua idade, porque não unia o útil ao agradável, e porque não estudava a bela Física, a bela Química, que lhe seriam de tanto auxílio no seu futuro farmacêutico? E acrescentou com bondade:
 - Eu não digo, quando se tem já uma posição na sociedade, e alguns vinténs de lado, que não seja bonito poder produzir um bom acróstico, ou , sem malícia, um engraçado epigrama... Mas fazer da poesia a principal ocupação, não! Desculpe-me o senhor Corvelo, essa é uma grande imprudência, e há-de concorrer para o desviar dos seus deveres...
Artur empalidecia de raiva. 

Eça de Queiroz in A Capital

O Eça já morreu há mais de 100 anos e, ao que parece, já nessa altura a arte era vista como algo que não deve ser a primeira e principal ocupação de uma pessoa. Não sei se é uma opinião só portuguesa, se faz parte da nossa tradição em não arriscar ou se é por se dizer que somos um país de artistas, o facto é que este pensamento já se arrasta há gerações. Li-o neste romance (pura arte de um grande nome da literatura portuguesa), já ouvi o Jacinto Lucas Pires a falar do mesmo, da altura em que decidiu que queria escrever, e também a mim já fizeram este discurso.

A verdade é que isto se reflecte no estado em que a arte, no geral, se encontra nosso país: retraída, menosprezada, muito pouco apoiada e consequentemente consumida apenas pela elite dos que ainda se interessam e acreditam nela.

1 comentário:

Ana Melita disse...

Concordo contigo.
E é deveras incoerente que um dos países com maior riqueza cultural e histórica, seja igualmente o país em que mais se menospreza a arte e a cultura. =/

Aliás, mais não seria de esperar quando se tem um (des)Governo que aboliu o ministério da cultura.